O reencontro fatal com o Episódio Sinistro de Virgulino Ferreira
por ADERALDO LUCIANO
Em algum ano da década de 80, eu, menino ainda, pude entrar pela primeira vez em um hotel estrelado e entender o que era aquela possibilidade de prazeres inacessíveis a mim, mas por breve modorra, ali sob a mira de meus olhos. O Hotel Bruxaxá, plantado em um minarete da Serra da Borborema, na malassombrada cidade de Areia, na Paraíba do Norte, dando para o vale eterno que nos levaria a João Pessoa, tendo Alagoa Grande, terra de Jackson do Pandeiro, aos pés, no vale extenso, era o símbolo de nossa pujança, da pujança cultural do que foi a “terra da cultura”, princesa, como diriam os burgueses locais, no brejo paraibano.
Nas paredes de seu saguão, uma espécie de corredor à esquerda de quem entrava, levando até o restaurante rústico colonial, estava um poema de Carlos Pena Filho, devidamente enquadrado em metal e vidro, com pranchas desenhadas por Wilton de Souza, dispostas as pranchas uma ao lado da outra de forma que por toda a parede podíamos ler o poema como em frames cinematográficos. Nunca esqueci os versos, tampouco os desenhos. Tentei decorá-los para cantar na viola. Naqueles tempos, eu não sabia que aquilo era uma publicação, era um livro cujas páginas se transformaram em quadros.
O Hotel Bruxaxá foi sugado em toda sua beleza, tudo que produziu foi chupado para o nada. O prédio continua lá, amarrado a uma pendenga judicial, abandonado ao mato, sujo, decrépito, habitado por espíritos soltos e presos, soterrado. O que foi do seu saguão luxuoso, hoje um alçapão escuro e mal-cheiroso. Quando um amigo de redes sociais postou em seu perfil o resgate dessa obra Episódio Sinistro de Virgulino Ferreira, prestes a ser jogada num lixo qualquer e não sei de onde, aquelas imagens, do poema e suas ilustrações, voltaram de supetão aos meus centros cerebrais, agitaram-se em espinhos por dentro de minha cabeça e revivi toda a emoção do dia em que, ainda menino, como disse, li nas paredes do Bruxaxá tão bela obra.
Que estrada é essa que nos leva sempre ao reencontro? Pedi ao meu sobrinho, um certo Lourivaldo Bernardo, mais conhecido como Lorico do Gás, trabalhador dos dias e noites, digno cidadão do lugar, ainda residente na cidade, que conseguisse fotografar o espólio do hotel onde estivessem essas pranchas, agora com sua história completa para mim. E ele o fez. Graças ao a ele, fecho a porta de um galpão aberto há mais de trinta anos. Nesse galpão aconteceu meu primeiro encontro com Carlos Pena Filho e Wilton de Souza. O nosso desastre cultural nos servirá algum dia para a consciência crítica.
Aderaldo Luciano, nascido em Areia, na Paraíba, é poeta pautado pela estética da poesia do povo. Estudioso da poesia e da música do Brasil profundo, é mestre e doutor em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive o projeto Roda de Cordel – leituras e estudos, intervenções de leitura de cordéis em escolas e comunidades rurais brasileiras.
2 comentários
Braulio Tavares
“Volta Seca! Solte os presos! Que o mundo já é prisão!” Me arrepio até hoje.
Juca Filho
Que história e que poema.
“Tua missão nesse mundo / era governar o escuro. / Acender uma fogueira / com os mil destroços da fúria. / Cultivar lavoura estranha. / Semear em sepulturas /
E arriscar, que é certo o risco / na profissão da aventura.”
Que beleza.
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Quando era criança e morava em Bom Jesus da Lapa, BA, pra onde fui com 6 meses e saí com 6 anos, um remanescente do bando de Lampião – segundo minha mãe dizia – trabalhava na Comissão do Vale do São Francisco, onde meu pai era engenheiro. Era vigia e se chamava Faísca. Minha memória vaga de infância me traz uma lembrança de estar passando pela área da sede e vê-lo em pé encostado na parede. “Mãinha” (era a Bahia, mesmo nascido no Rio, fui menino pequeno por lá) disse: “É o Faísca, foi do bando de Lampião.” Eu não entendi bem, ela me explicou, por alto. Eu devia estar pelos 5 anos ou quase, isso foi lá pra 61. Na minha imaginação Lampião ficou sendo uma espécie de Jerônimo, o herói do Sertão, da radionovela que todos em casa ouviam, antes que, às 8, se apagasse o gerador que alumiava Lapa. Teria existido mesmo esse Faísca no bando do Capitão?