Buscava um Recife meu

Arte de Jeims Duarte

por ANDRÉ BALAIO

Me vi na esquina da Rua da Aurora com a Conde da Boa Vista. Estava na frente do São Luiz, o único cinema de rua que resiste no Recife, com a beleza dos vitrais acesos e a imponência do vermelho dos acolchoados, das cadeiras e cortinas. O São Luiz é o lugar que melhor representa o amor de uma cidade pelo cinema. Mas naquele momento eu precisava também do amor da cidade pela poesia. E do amor da poesia pela cidade. Pensei em Carlos Pena Filho. Nenhum poeta demonstrou mais amor por uma cidade do que ele.

E eu, buscando um Recife meu, procurei, entre a memória e a invenção, uma cidade que calasse no meu espírito, no meu passado vivido e no passado que gostaria de ter vivido. Fui para a Avenida Guararapes à procura da cidade de Carlos. Queria encontrar o Recife do poeta e o poeta do Recife no movimento das lojas e dos escritórios, na boemia instalada nos bares, nas reminiscências dos cinemas e até na minha infância de visitas ao trabalho do meu pai. Tudo isso devia estar na Avenida Guararapes. Inclusive o Savoy, o bar que virou poema.

Chopp (Carlos Pena Filho)

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.

Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Eram quase cinco da tarde e eu queria ver o festim do Bairro de Santo Antônio, quem sabe encontrar o poeta recitando entre os amigos e seus copos de chope num ambiente impregnado de verve, humor, ironia e lirismo. Desci a ponte Duarte Coelho e fui marchando pela Avenida Guararapes. O prédio do Cinema Trianon estava lá, mas não havia letreiros, cartazes e pôsteres de filmes. Nunca mais a bilheteria, a fila ávida, a sessão prestes a começar. Agora é prédio desbotado de faculdade privada com um departamento de educação à distância. Não, não quero mais distância, quero me acercar de pessoas, em pé nas calçadas ou sentadas na mesa de um bar. Continuo a caminhada, passo ao lado da banca Guararapes e aceno para o dono, seu Orlando “Odin”, um dos bastiões dos quadrinhos pernambucanos. A banca é um oásis rodeado de edifícios sem placas, calçadas vazias, farmácias, faculdades, camelôs, lanchonetes e música evangélica. Um dos prédios tem os pilares roxos, nada mais falso e artificial.

Chego à frente do edifício Sigismundo Cabral a fim do encontro inesperado, da surpresa que as tardes etílicas provocam. Há um trecho, entre uma farmácia e a agência da Caixa, completamente fechado, as portas de correr abaixadas, pichadas com rabiscos ininteligíveis. Reconheço, reconheço o lugar do bar Savoy, que povoa a minha memória mais distante e infantil. Não há nada que remeta a ele a não ser, no canto, o portão de ferro que dá acesso ao prédio, o mesmo das velhas fotografias dos felizes tempos boêmios. Então está tudo perdido, meus desejos presos, meus sonhos frustrados. Agora só me resta voltar para casa.

É quando percebo que este prédio, e somente ele na paisagem urbana, está pintado de um azul vibrante. Logo o azul, a cor do poeta. Uma piscadela de olho do destino, quem sabe do próprio Carlos. Ah, se não pode mais pintar os sapatos de azul, pelo menos o que resta do bar que você eternizou está pintado. Uma homenagem silenciosa que só eu entendo. Temos um segredo, Carlos. Um segredo azul.

Soneto do desmantelo azul (Carlos Pena Filho)

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


André Balaio é escritor e roteirista. Atualmente mora no Recife. Quebranto é seu primeiro livro de contos. Este livro foi finalista do Prêmio SESC 2017 (com o título Noite Cega) e terceiro colocado no Concurso Internacional UBE – RJ 2017. O conto O lado de lá foi o vencedor do prêmio Off FLIP 2016.

Um comentário

  • Artur Lins

    André, de um início para nos situar em meio ao dado geográfico, passei à emoção do lirismo registrado. Me vi ali ao teu lado, sem encontrar aquela cidade do passado, mas ai se eu deixar de buscá-la.
    Parabéns!

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